quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Ponge na Poeira

Meu armário, depois de quase três meses sem um dedo de arrumação, é um território inóspito, um vazio civilizacional. De vez em quando passo ao largo da porta, dou uma olhada lá para dentro e mexo em uma camisa aqui, um pedaço de luminária quebrada ali, mas assim que percebo a grandiosidade da tarefa que tenho pela frente, reservo para um outro dia, no qual eu tenha mais tempo e disposição. Este dia nunca chega, na vida de ninguém. Vou acabar tirando um dia sem tempo nem disposição e arrumar o que houver para arrumar sem nenhum dos dois disponível.
Hoje de manhã fui procurar uma camisa específica que só poderia estar neste armário. Não sei o que me deu na cabeça de acreditar na intervenção divina que me faria achar qualquer peça de roupa específica naquele turbilhão, mas ativei o Princípio Esperança e me embrenhei na mata fechada de roupas, periféricos computacionais e outros troços.
A tal camisa específica, obviamente, não apareceu, mas surgiu um livro do Francis Ponge que estava perdido no meio de tudo: "A Mimosa". Mexer num armário bagunçado é como pesquisar eras geológicas da Terra: se você tiver algum estudo sobre si mesmo, e geralmente temos (costumamos ser, nós mesmos, a matéria sobre a qual temos mais informação, embora nem sempre tiremos disso as melhores conclusões), é possível lembrar do momento em que cada coisa que aparece nas camadas do armário foi posta ali. E eu me lembro quando esse Ponge foi parar no meio de tudo, uma coisa besta: eu estava prestes a ficar gripado, estava cansado, tinha tentado manter os olhos abertos lendo-o no metrô, e quando tirei minha camisa no meu quarto, ele saltou da minha mão para dentro do armário porque eu simplesmente não tinha tido a noção de tirá-lo das mãos. Ri de mim mesmo, deixei-o lá, dormi, e acordei, e trabalhei, e voltei, e dormi no dia seguinte, e assim foi desde... maio?Não!:abril! Ponge lá descansa, cristalizado, desde abril.
E se algo muito crucial tivesse acontecido na minha vida nesse meio tempo? Um falecimento, uma mudança de emprego, uma seqüência de desilusões amorosas, uma operação de recuperação dolorosa? Este livro, antes!, esta posição do livro seria meu remanescente de outros tempos, seria minha testemunha intacta de uma outra vida. Mas não foi o caso. Estou delirando demais.
Sei que depois de achar o livro, resolvi retomar a leitura no metrô a caminho do Odeon. Se você tem alguma resistência a Poesia, deveria ler Ponge. Ele é um poeta bem esquisito: um sujeito que sai vendo as coisas, as mais elementares, e falando sobre elas, esmiuçando, não bem buscando sua essência, mas apenas percebendo-as até seus mais improváveis meandros. Lembra um tanto a disciplina descritiva das "Odes Elementares", de Pablo Neruda, da qual acho que a mais eminente é a "Ode à Cebola", mas Ponge ainda é bem diferente de Neruda; ele é mais obstinado em sua investigação e, talvez por isso, menos lírico, o que eu aprecio. Hoje em dia há pouca coisa em catálogo no Brasil (minha edição, por exemplo, de "A Mimosa", acho que está esgotada), mas vale a pena a
pesquisa. Com certeza você não terá dificuldades em achar "A Mesa" (ed. Iluminuras), um de seus livros mais importantes, cuja capa coloquei ai do ladinho.
Ao chegar ao trabalho, colhi para apresentar minha própria amostra da destreza pongiana tirada do livrinho que tenho, que dormiu por mais de uma estação em meu armário (com tradução de Adalberto Müller):

(...) 1. Cada galho da mimosa é um poleiro com pequenos sóis toleráveis, com pequenos entusiasmos súbitos, com alegres pequenas embolias terminais. (Oh! como é difícil aproximar-se da característica das coisas!). É regozijante ver um ser em desenvolvimento chegar, por um tão grande número de suas extremidades, a tais brilhantes sucessos. Como um fogo de artifício bem sucedido os foguetes terminam em estoiros de sóis. (...)

e, mais adiante, meu trecho predileto:

(...)Digamos melhor: no próprio momento da glória, no paroxismo da floração, a folhagem já apresenta sinais de desespero, ou pelo menos indícios de desleixo aristocrático. Dir-se-ía que a expressão das folha desmente a das flores, e reciprocamente. (...)

Ao concluir o poema, juro que dá vontade de prestar atenção às flores. Qualquer flor.
Depois, felizmente, isso passa...

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