O bom foi ter folheado o dito e encontrado no meio o nome de um autor bem esquecido das editoras brasileiras: Karel Capek (falta um sinal diacrítico sobre o "C", mas não ti

Li dele dois livros já publicados no Brasil: "Histórias Apócrifas"(ed. 34) e "A Guerra das Salamandras" (ed. Brasiliense), ambos desesperançadamente esgotados. "Histórias Apócrifas" é uma seleta de contos, alguns curtíssimos, passados em diversos períodos históricos, e que mostram as visões oficiosas de momentos cruciais na história da humanidade. Entre outras narrativas hilárias, um padeiro vem reclamar conosco da forma como Jesus Cristo estava prejudicando, com suas atividades milagreiras, o futuro da profissão; de outro lado, vemos a conversa entre Arquimedes e o soldado romano que veio prendê-lo em casa, em Siracusa, durante a invasão da Sicília, enquanto ele estava prestes a fazer uma importante descoberta; e ainda por outro, temos um homem das cavernas discutindo com sua esposa sobre o comportamento dos filhos. Há momentos particularmente tensos, como o dedicado a Hamlet e ao momento do nascimento de Cristo pela visão de uma família vizinha da manjedoura em questão, mas o tocante e o burlesco convivem harmoniosamente. E se formos falar do tenso e do burlesco interpenetrando-se, temos "A Confissão de Don Juan", em que, no leito de morte, o mitológico galanteador consegue praticamente convencer seu confessor de que o melhor lugar para ele é o Inferno, por mais que se arrependa.
Mas o melhor, mesmo, foi ter lido "A Guerra das Salamandras". Este foi, provavelmente, o livro do qual li mais páginas alcoolizado na vida, e tudo, no entanto, permanece tão claro para mim (ou eu lembro como se permancesse). Lembro-me que na época em que tive uma cópia emprestada de meu amigo Mauricio Durski morava na Lapa, descia nas tardes de domingo e ficava lendo no bar da rua Silvio Romero, escutando ecos da transmissão do futebol, sentindo a luminosidade sumir enquanto subia pelos paralelepípedos à minha frente - e eu na mesinha metálica, com uma Antartica Original e as salamandras como companhia.

Diz lá o livro que num futuro indeterminado, uma espécie de salamandra gigante é descoberta por pescadores de pérolas numa fossa do Oceano Pacífico. Descobre-se rapidamente que as salamandras são seres racionais e que, afora a necessidade de permancer com a pele úmida, são capazes do mesmo que os seres humanos, inclusive de aprender nossos idiomas e de cálculos complexos. No entanto, a história da relação entre homens e salamandras vai ser amarga - escravidão, incompreensão, extermínio. A conclusão desta fantasia levada às últimas consequências (e descrita como uma concatenação de documentos oficiais e testemunhos recolhidos ao longo das décadas) é de que o ser humano não conseguiria conviver com uma racionalidade que lhe fizesse frente.
É uma tentação tomar o "Guerra das Salamandras" como uma alegoria do continente explosivo em que o autor vivia (considerando que o livro foi concluído em 1936), mas certamente isso seria diminuir seu alcance: depois da leitura, a conclusão é que o ser humano não consegue conviver com nenhuma diferença. O bicho homem só está em paz e tolera a si mesmo e ao seu irmão de pele, olhos, credo e orientação sexual imediatamente adjacente - e olhe lá! Hoje em dia no Ocidente a tolerância é a palavra de ordem - mas por quanto tempo? A intolerância continua existindo concretamente, fora do alcance institucional politicamente correto. De tempos em tempos, aparentemente, ela encontra sua voz, se empertiga, adensa e consegue descer seu martelo sobre o Outro malévolo - e até minutos antes que o martelo caia, não conseguimos perceber que somos este Outro. Como provavelmente Karel Capek não percebeu, quando recusou-se a deixar Praga mesmo sob a eminência da invasão de Hitler e sendo declarado "inimigo público nº 2 do Reich". Faleceu, felizmente para ele, em 1938, antes que fosse mandado para um campo de concentração, sorte que não teve seu irmão, o pintor Joseph Capek, levado pela Gestapo.
Enquanto escrevo inocentemente um blog fuleiro num recanto perdido da rede, quem sabe se não viro, eu também, inimigo público do Reich, mesmo que o 2.346º?
(P.S.: Por mais que tenha buscado, não consegui saber quem era o checo "inimigo público nº 1". Cartas para a redação)