sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Salamandras Apócrifas de Capek

Folheio o livro recém-chegado "Delacroix Escapa das Chamas", de Edson Aran. O livro, propriamente, é de humor: uma distopia engraçalóide fazendo sequências de tiradas espertinhas no estilo Casseta & Planeta para mentes elevadas e envasada como romance de verdade (sei que parece que estou falando mal do pobre livro, mas eu apenas acho que ele está mal posicionado como produto; se ele entrasse na "coleção Sigmund", da Desiderata, acho que ficaria perfeito: eu consigo ver as pessoas rindo das piadas sobre o futuro da genética e de termos como "canibais dadá").
O bom foi ter folheado o dito e encontrado no meio o nome de um autor bem esquecido das editoras brasileiras: Karel Capek (falta um sinal diacrítico sobre o "C", mas não tive paciência de encontrar as ferramentas para colocá-lo onde devia. de toda forma, pronuncia-se "tchapek"). O cara em questão é um escritor tcheco, nascido em 1890, e que é mais famoso entre nós por ter cunhado em 1920, a partir de uma peça que escreveu, o termo roboto, um neologismo que identifica um trabalhador meramente braçal, sem alma, autômato completo. Traduzido para o inglês, o termo virou robot e assim passou para o mundo. Mas, literariamente, o Sr. Capek está acima dessa trivialidade idiomática muitíssimo.
Li dele dois livros já publicados no Brasil: "Histórias Apócrifas"(ed. 34) e "A Guerra das Salamandras" (ed. Brasiliense), ambos desesperançadamente esgotados. "Histórias Apócrifas" é uma seleta de contos, alguns curtíssimos, passados em diversos períodos históricos, e que mostram as visões oficiosas de momentos cruciais na história da humanidade. Entre outras narrativas hilárias, um padeiro vem reclamar conosco da forma como Jesus Cristo estava prejudicando, com suas atividades milagreiras, o futuro da profissão; de outro lado, vemos a conversa entre Arquimedes e o soldado romano que veio prendê-lo em casa, em Siracusa, durante a invasão da Sicília, enquanto ele estava prestes a fazer uma importante descoberta; e ainda por outro, temos um homem das cavernas discutindo com sua esposa sobre o comportamento dos filhos. Há momentos particularmente tensos, como o dedicado a Hamlet e ao momento do nascimento de Cristo pela visão de uma família vizinha da manjedoura em questão, mas o tocante e o burlesco convivem harmoniosamente. E se formos falar do tenso e do burlesco interpenetrando-se, temos "A Confissão de Don Juan", em que, no leito de morte, o mitológico galanteador consegue praticamente convencer seu confessor de que o melhor lugar para ele é o Inferno, por mais que se arrependa.
Mas o melhor, mesmo, foi ter lido "A Guerra das Salamandras". Este foi, provavelmente, o livro do qual li mais páginas alcoolizado na vida, e tudo, no entanto, permanece tão claro para mim (ou eu lembro como se permancesse). Lembro-me que na época em que tive uma cópia emprestada de meu amigo Mauricio Durski morava na Lapa, descia nas tardes de domingo e ficava lendo no bar da rua Silvio Romero, escutando ecos da transmissão do futebol, sentindo a luminosidade sumir enquanto subia pelos paralelepípedos à minha frente - e eu na mesinha metálica, com uma Antartica Original e as salamandras como companhia.
Diz lá o livro que num futuro indeterminado, uma espécie de salamandra gigante é descoberta por pescadores de pérolas numa fossa do Oceano Pacífico. Descobre-se rapidamente que as salamandras são seres racionais e que, afora a necessidade de permancer com a pele úmida, são capazes do mesmo que os seres humanos, inclusive de aprender nossos idiomas e de cálculos complexos. No entanto, a história da relação entre homens e salamandras vai ser amarga - escravidão, incompreensão, extermínio. A conclusão desta fantasia levada às últimas consequências (e descrita como uma concatenação de documentos oficiais e testemunhos recolhidos ao longo das décadas) é de que o ser humano não conseguiria conviver com uma racionalidade que lhe fizesse frente.
É uma tentação tomar o "Guerra das Salamandras" como uma alegoria do continente explosivo em que o autor vivia (considerando que o livro foi concluído em 1936), mas certamente isso seria diminuir seu alcance: depois da leitura, a conclusão é que o ser humano não consegue conviver com nenhuma diferença. O bicho homem só está em paz e tolera a si mesmo e ao seu irmão de pele, olhos, credo e orientação sexual imediatamente adjacente - e olhe lá! Hoje em dia no Ocidente a tolerância é a palavra de ordem - mas por quanto tempo? A intolerância continua existindo concretamente, fora do alcance institucional politicamente correto. De tempos em tempos, aparentemente, ela encontra sua voz, se empertiga, adensa e consegue descer seu martelo sobre o Outro malévolo - e até minutos antes que o martelo caia, não conseguimos perceber que somos este Outro. Como provavelmente Karel Capek não percebeu, quando recusou-se a deixar Praga mesmo sob a eminência da invasão de Hitler e sendo declarado "inimigo público nº 2 do Reich". Faleceu, felizmente para ele, em 1938, antes que fosse mandado para um campo de concentração, sorte que não teve seu irmão, o pintor Joseph Capek, levado pela Gestapo.
Enquanto escrevo inocentemente um blog fuleiro num recanto perdido da rede, quem sabe se não viro, eu também, inimigo público do Reich, mesmo que o 2.346º?
(P.S.: Por mais que tenha buscado, não consegui saber quem era o checo "inimigo público nº 1". Cartas para a redação)

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Ponge na Poeira

Meu armário, depois de quase três meses sem um dedo de arrumação, é um território inóspito, um vazio civilizacional. De vez em quando passo ao largo da porta, dou uma olhada lá para dentro e mexo em uma camisa aqui, um pedaço de luminária quebrada ali, mas assim que percebo a grandiosidade da tarefa que tenho pela frente, reservo para um outro dia, no qual eu tenha mais tempo e disposição. Este dia nunca chega, na vida de ninguém. Vou acabar tirando um dia sem tempo nem disposição e arrumar o que houver para arrumar sem nenhum dos dois disponível.
Hoje de manhã fui procurar uma camisa específica que só poderia estar neste armário. Não sei o que me deu na cabeça de acreditar na intervenção divina que me faria achar qualquer peça de roupa específica naquele turbilhão, mas ativei o Princípio Esperança e me embrenhei na mata fechada de roupas, periféricos computacionais e outros troços.
A tal camisa específica, obviamente, não apareceu, mas surgiu um livro do Francis Ponge que estava perdido no meio de tudo: "A Mimosa". Mexer num armário bagunçado é como pesquisar eras geológicas da Terra: se você tiver algum estudo sobre si mesmo, e geralmente temos (costumamos ser, nós mesmos, a matéria sobre a qual temos mais informação, embora nem sempre tiremos disso as melhores conclusões), é possível lembrar do momento em que cada coisa que aparece nas camadas do armário foi posta ali. E eu me lembro quando esse Ponge foi parar no meio de tudo, uma coisa besta: eu estava prestes a ficar gripado, estava cansado, tinha tentado manter os olhos abertos lendo-o no metrô, e quando tirei minha camisa no meu quarto, ele saltou da minha mão para dentro do armário porque eu simplesmente não tinha tido a noção de tirá-lo das mãos. Ri de mim mesmo, deixei-o lá, dormi, e acordei, e trabalhei, e voltei, e dormi no dia seguinte, e assim foi desde... maio?Não!:abril! Ponge lá descansa, cristalizado, desde abril.
E se algo muito crucial tivesse acontecido na minha vida nesse meio tempo? Um falecimento, uma mudança de emprego, uma seqüência de desilusões amorosas, uma operação de recuperação dolorosa? Este livro, antes!, esta posição do livro seria meu remanescente de outros tempos, seria minha testemunha intacta de uma outra vida. Mas não foi o caso. Estou delirando demais.
Sei que depois de achar o livro, resolvi retomar a leitura no metrô a caminho do Odeon. Se você tem alguma resistência a Poesia, deveria ler Ponge. Ele é um poeta bem esquisito: um sujeito que sai vendo as coisas, as mais elementares, e falando sobre elas, esmiuçando, não bem buscando sua essência, mas apenas percebendo-as até seus mais improváveis meandros. Lembra um tanto a disciplina descritiva das "Odes Elementares", de Pablo Neruda, da qual acho que a mais eminente é a "Ode à Cebola", mas Ponge ainda é bem diferente de Neruda; ele é mais obstinado em sua investigação e, talvez por isso, menos lírico, o que eu aprecio. Hoje em dia há pouca coisa em catálogo no Brasil (minha edição, por exemplo, de "A Mimosa", acho que está esgotada), mas vale a pena a
pesquisa. Com certeza você não terá dificuldades em achar "A Mesa" (ed. Iluminuras), um de seus livros mais importantes, cuja capa coloquei ai do ladinho.
Ao chegar ao trabalho, colhi para apresentar minha própria amostra da destreza pongiana tirada do livrinho que tenho, que dormiu por mais de uma estação em meu armário (com tradução de Adalberto Müller):

(...) 1. Cada galho da mimosa é um poleiro com pequenos sóis toleráveis, com pequenos entusiasmos súbitos, com alegres pequenas embolias terminais. (Oh! como é difícil aproximar-se da característica das coisas!). É regozijante ver um ser em desenvolvimento chegar, por um tão grande número de suas extremidades, a tais brilhantes sucessos. Como um fogo de artifício bem sucedido os foguetes terminam em estoiros de sóis. (...)

e, mais adiante, meu trecho predileto:

(...)Digamos melhor: no próprio momento da glória, no paroxismo da floração, a folhagem já apresenta sinais de desespero, ou pelo menos indícios de desleixo aristocrático. Dir-se-ía que a expressão das folha desmente a das flores, e reciprocamente. (...)

Ao concluir o poema, juro que dá vontade de prestar atenção às flores. Qualquer flor.
Depois, felizmente, isso passa...

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Ajuda dos universitários - Parte 1: Proust

Alguns livros nos passam apenas uma certeza, quando contamplamos seus tomos volumosos, nos perdemos entre algumas linhas de sua escrita enigmática e damos uma boa olhada nas introduções técnicas que os precedem - e esta certeza, que exaramos num suspiro mal percebido entre os lábios semicerrados é: "nunca lerei esta porcaria".
Este seleto grupo é formado, entre uma infinidade de outros, mais ou menos famosos, por "Em Busca do Tempo Perdido", "Ulisses", "Fausto", de Goethe, e "Como É", de Beckett, livros que não propriamente alcançaram a fama de enigmáticos - eles já nasceram assim, e costumavam ser um desafio mesmo para os contemporâneos e conterrâneos de seus autores. "Ulisses" nunca foi fácil, mesmo quando era adotado como material pornográfico para os soldados britânicos solitários nas trincheiras da II Grande Guerra; "Como É" já começou a merecer estudos antes mesmo de sua publicação em Inglês, em 1964; e "Em Busca do Tempo Perdido"... bem... nenhum livro daquele tamanho pode ter sido fácil um dia.
Em todos esses casos, acho que não há muita solução além de comportar-se com a humildade devida e compreender que os autores, e notadamente os grandes autores (como os grandes compositores, pintores, filósofos etc), tendem a ser menores que suas obras, e quanto mais distantes estivermos do momento de sua criação, mais difícil será conseguir o auxílio das motivações que podem ajudar a elucidá-la. Para esses livros basilares, suas histórias são a história de suas leituras.
Hoje, estou pensando em especial no "Em Busca do Tempo Perdido", em seus sete longos tomos, praticamente aquilo que Marcel Proust viveu para colocar no mundo, com exceção de algumas poucas outras prosas e um outro romance incompleto. Geralmente as pessoas encaram o projeto de ler a Recherche (como preferem chamar alguns, por síntese e/ou impáfia) como uma das realizações necessárias da vida adulta, talvez não da mesma estatura que ter um filho e plantar uma árvore, mas aparentada de escalar o Everest e jogar uma moeda na Fontana di Trevi. Eu, por ora, li apenas o primeiro tomo, antes que a urgência de outras buscas me afastasse do caminho, mas ainda acho importante retomar futuramente. E aqui indico algumas das leituras que acho que fariam bem ao leitor comum como eu (e não ao estudioso, é o que quero dizer) na hora dessa retomada:

1) "Como Proust Pode Mudar Sua Vida", de Alain de Botton (ed. Rocco) - eu sei que você vai colocar uma capa de papel pardo, no melhor estilo escolar, para ninguém reparar no que você tem nas mãos enquanto estiver no metrô. Se ler auto-ajuda pode te comprometer como leitor, ler auto-ajuda sobre Proust é mais vexatório ainda! Pois este é um depoimento de leitor, e um leitor atento, disfarçado com bom humor de livro de auto-ajuda (inclusive nos títulos dos capítulos, tais como "Como Ser um Bom Amigo" e "Como Sofrer com Sucesso"). Misturando dados biográficos com observações tiradas da Recherche, esse rapaz Alain de Botton, que já vendeu milhões de exemplares de seus livros de divulgação de Filosofia e Literatura na Europa, é capaz de tirar o medo que a solenidade de quase um século de adoração faz pesar sobre ele até do leitor mais relapso, sem nunca dar a impressão de que está tentando esgotar o assunto. Se você já está mais do que escolado em literatura do começo do século XX e já topou com o nome e citações de Proust tantas vezes que você já tem até a impressão de ter lido a Recherche sem ter nem começado, pode esquecer. Mas se você sabe até agora vagamente que Proust era escritor e só, esse pode ser o seu ponto de partida, sem nenhuma vergonha.

2) "Fun Home", de Alison Bechdel (ed. Conrad) - Este aqui é um livro de História em Quadrinhos, e é menos uma biografia quadrinizada que uma tentativa de auto-análise de uma obsessão que atravessa a vida adulta da autora: a relação com o pai, homossexual como ela, morto num atropelamento. Desvendar sua própria vida vendo-a pelos olhos do pai, leitor de Proust e F. Scott Fitzgerald, é o grande objetivo do livro. E no caminho acompanhamos o processo de auto-descoberta de Alison enquanto ela, por sua própria conta, desvenda a vida de seu pai e encontra os laços que a ligam àquele homem que lhe parece, no fim das contas, tão desconhecido. Paralelos entre a vida de sua família e trechos da Recherche estão por toda parte, e é garantida a vontade de se embrenhar por ele assim que "Fun Home" acaba, bem como pelas obras de Wallace Stevens, F. Scott Fitzgerald e de todos os autores que aparecem nas capas dos livros que se insinuam em cada quadrinho. Um livro extremamente delicado, e uma demonstração de como Proust pode salvar mesmo algumas vidas.

3) "Proust", de Pietro Citati (ed. Companhia das Letras) - Tenho a impressão de que há dois tipos de biografia: aquela definitiva, com todos, TODOS os dados, até o ângulo em que o sujeito deixou o cabelo penteado para o lado no dia 21 de junho de 1871, que é extremamente necessária como base para quem já quer saber tudo sobre o referido biografado ou ter uma obra de referência confiável para não sair falando besteiras sem lastro quando o assunto surgir; e aquela ensaística, que toma a liberdade de te apresentar o biografado por zonas mais sombrias ou iluminadas ao gosto do autor. A diferença entre a primeira e segunda: a segunda geralmente é a divertida. Mas isso é mais que justo! Só faltava eu pedir que Joseph Frank, além de escrever 5 tomos gigantes sobre Dostoievski, ainda me fizesse sorrir! Tenha paciência...
Este "Proust" é um dos exemplos mais felizes de que me recordo do segundo gênero. Mesmo que você pense que está apenas começando a ler sobre um francezinho esnobe e asmático, não há como escapar do ritmo informal e romancesco que Citati impõe a seu livro. É quase como se estivéssemos descobrindo Proust junto com ele.

Se nada mais der certo, não se desespere: você pode se juntar a um dos grupos de estudo que todo ano surgem por ai para a leitura de "Em Busca do Tempo Perdido". Eu mesmo estou pensando em fazer minha retomada em algum deles, quando for embarcar em "A Sombra das Raparigas em Flor".

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Patrulha Sexual Modernista

Um cliente veio outro dia defender a tese, a seu ver, revolucionária, de que Charles Baudelaire e Téophile Gautier não eram apenas grandes amigos, mas amantes, no sentido mais carnal e abandonado possível. Suas conclusões ele tirava, segundo ele, a partir de documentação inédita a que teve acesso em Honfleur, cidade da Normandia na qual Baudelaire passou boa parte do ano de 1859, ao lado da mãe. Fico imaginando porque motivo algum relato sexual tórrido de qualquer natureza, sobre ele mesmo ou sobre outros, seria guardado por Baudelaire ao alcance de sua mãe, com quem ele já mantinha uma relação tão fragilmente construída. Mas resolvi ficar quieto, diante da disposição que meu cliente apresentou de continuar falando.
Como prova mais imediata, este mesmo cliente pega da estante de Literatura Estrangeira o volume "Baudelaire", da editora Boitempo, que traz no corpo principal o longo prefácio escrito por T.Gautier para a primeira edição de "As Flores do Mal", e entre muitos dados contingentes, uma menção à dedicatória feita de próprio punho por Baudelaire a seu amigo, dizendo: "meu muito caro Téophile, a dedicatória impressa na primeira página é apenas uma pálida sombra da amizade e da admiração verdadeira que sempre senti por ti. Sabes bem disso". Fico estático contemplando o trecho, enquanto o entusiasmado pesquisador ensaiava cutucões gaiatos no meu braço esquerdo. Se tudo que ele tiver encontrado em Honfleur, se é que encontrou, tiver este potencial incendiário, não irá muito longe. E, ademais, quis dizer a ele que essa coisa de devassar a sexualidade de bastiões da cultura ocidental teve seu tempo de hype, mas que hoje em dia não me parecia fazer diferença se, entre as flores do mal, uma tiver sido uma flor de antúrio.
O acontecimentozinho da tarde teve como boa consequência que eu tomasse da minha própria estante de casa o meu próprio exemplar de "Baudelaire" e o folheasse, depois de quase cinco anos. É de se espantar que qualquer edição de "As Flores do Mal" tenha saído em qualquer tempo sem o incremento desta incrível introdução - o texto de Téophile Gautier não só é riquíssimo de informações privilegiadas sobre o processo criador de Baudelaire, mas tem o papel de funcionar como um auto-de-fé do Modernismo recém-nascido, mostrando como Baudelaire, autor e personalidade, se desvencilhava das investidas rotuladoras das escolas já vigentes. A tentação para quem gosta de biografias modernistas é imaginar se ao escrever este glorioso prefácio, TG já imaginava os problemas judiciais que Baudelaire sofreria, seu isolamento gradativo, sua morte aos 46 anos, nos braços da mãe, depois de um colapso em solo belga, fisicamente devastado e cheio de dívidas.
A tentação dura pouco, no entanto: logo depois somos levados a lembrar que esse mesmo Téophile Gautier, o grande arauto da "arte pela arte", formulador da idéia que seria um dos pilares da etapa mais coesa do modernismo de que a Arte produz beleza e que nada mais pode se esperar dela, não se importaria com isso; que por mais que num prefácio como esse fosse obrigado, pela sua própria trajetória, a equilibrar a amizade e a experiência pessoal com o exame entusiasticamente técnico dos poemas que considera essenciais, o amigo e a obra eram duas instâncias diversas.
Recomendo muitíssimo a leitura desse prefácio feita em combinação com o recém-lançado "Modernismo", do Peter Gay (Companhia das Letras), que na primeira parte, intitulada "Fundadores", traça, em separado, bons perfis de Baudelaire e Téophile Gautier e detém-se um pouco mais na história do processo judicial que obrigou os editores a retirar seis poemas considerados obscenos da segunda edição de "As Flores do Mal". E vou tratar de conseguir para mim alguma edição de "Mademoiselle de Maupin", romance de Gautier que me dizem, mas ainda não provaram, que registra o primeiro threesome entre personagens na literatura do século XIX.



domingo, 16 de agosto de 2009

Pessoas Que Arruinam The Whole Fucking Experience - parte 1: fãs de Bukowski

Que fique bem claro logo de início: aqui não me refiro aos leitores que lêem Bukowski como parte de um corpus maior de leituras, pessoas que se divertem com as peripécias rocambolescas do Velho Safado ou que, estudando a literatura americana na segunda metade do século XX, não teriam, mesmo que quisessem, como contornar uma obra com tamanha influência. Acho que essa ressalva, felizmente, está endereçada a mais de 90% dos leitores.
Refiro-me, isso sim, aos fãs incondicionais de Bukowski (f.i.B.), do tipo que a gente já conhece: as pessoas que acham que o máximo da experiência humana é viver sordidamente, cercado de álcool, cigarros, mulheres suspeitas e uma máquina olivetti que parece que vai desmontar a cada irritante batida nas teclas sebentas. São as pessoas que gastam todo o dinheiro dos pais em cerveja barata para ela e para os amigos outsiders que as cercam, que saem todos os dias da semana para as boates mais xexelentas e são capazes de mendigar o valor da entrada até derramarem lágrimas de sangue, só para gastar o dobro disso para comprar uma camisa previamente rasgada do Sex Pistols e quatro vezes isso para comprar antes de todo mundo ingressos para todas as apresentações no Brasil da última grande banda londrina que não sai de seu i-Pod. As pessoas que realmente vivem suas vidas como lixo dificilmente têm esse tipo de escolha.
Quando se sentem oprimidos pelo provincianismo carioca, os f.i.B. se congregam com seus amigos de infância de colégios tradicionais católicos e vão todos ser miseráveis em Paris ou Praga, e de lá trazem vários suvenires miseráveis legais - inclusive edições em papel-jornal de Bukowski em tcheco.
Os f.i.B. também têm outras leituras colaterais, mas apenas complementares: para filosofar, têm "Nietszche em 90 minutos" e qualquer coisa que saia da boca do seu professor predileto na faculdade; para atualidades, as matérias mais curtas da Piauí e da Caros Amigos; entre os autores, geralmente Jack Kerouac e William Burroughs - mas o primeiro é espiritualizado demais, e o segundo drogado e gay demais para suas sensíveis consciências.
O que depõe muito favoravelmente a favor de Bukowski é que, para ser f.i.B. de raiz você tem ainda que fingir que leu a maior parte das coisas que menciona, porque se você tiver realmente lido e pensado sobre a maior parte dos poemas que estão, por exemplo, em "Love Is a Dog From Hell", e pensar mesmo com carinho sobre a situação de Henry Chinaski e for um f.i.B, talvez essa atividade sozinha já faça com que você deixe de ser. Porque a conclusão geral, pelo menos a minha, não é que o Sr. Bukowski ache que a vida deva ser assim, mas que a dele infelizmente foi quase sempre assim e pronto - "se a sua puder ser diferente, admita essa diferença e faça com ela uma coisa melhor do que eu fiz", me parece ouvi-lo dizer.
Da minha parte, acho Bukowski muito divertido de ler. É facílimo: algo acontece depois de outro algo, pessoas fazem coisas, sempre um narrador único para te tomar pela mão, com o qual se identificar e no qual confiar. É bem satisfatório... Devo ter lido "Mulheres" em uma noite, sem nem me dar conta; "Factótum" me tomou o tempo de uma viagem de ônibus para São Paulo; os poemas não têm a aura de mistério insondável de um Mallarmé ou T.S.Eliot - são prosa picotada, várias sentenças disfarçadas de verso porque ele quis que fosse assim e foda-se. É óbvio que as histórias pelas quais esse sujeito passou tinham que ser contadas!
Recomendo a todo mundo que queira escapar de ser f.i.B que assista a "The Charles Bukowski Tapes": é basicamente um depoimento de quatro horas ou mais, editado por Barbet Schroeder, prestado em 1985. Dois DVDs de Bukowski falando e falando e falando... sobre tudo - livros, natureza, mulheres, bebida etc. Acho que não há edição brasileira e que essa importada não tem legendas, mas vale a pena apurar o Inglês, se possível. Você sai da sessão pensando que esse velhinho de cara rachada devia ser um ótimo papo num bar... e que talvez você não devesse parar por ai nas suas leituras.