segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Patrulha Sexual Modernista

Um cliente veio outro dia defender a tese, a seu ver, revolucionária, de que Charles Baudelaire e Téophile Gautier não eram apenas grandes amigos, mas amantes, no sentido mais carnal e abandonado possível. Suas conclusões ele tirava, segundo ele, a partir de documentação inédita a que teve acesso em Honfleur, cidade da Normandia na qual Baudelaire passou boa parte do ano de 1859, ao lado da mãe. Fico imaginando porque motivo algum relato sexual tórrido de qualquer natureza, sobre ele mesmo ou sobre outros, seria guardado por Baudelaire ao alcance de sua mãe, com quem ele já mantinha uma relação tão fragilmente construída. Mas resolvi ficar quieto, diante da disposição que meu cliente apresentou de continuar falando.
Como prova mais imediata, este mesmo cliente pega da estante de Literatura Estrangeira o volume "Baudelaire", da editora Boitempo, que traz no corpo principal o longo prefácio escrito por T.Gautier para a primeira edição de "As Flores do Mal", e entre muitos dados contingentes, uma menção à dedicatória feita de próprio punho por Baudelaire a seu amigo, dizendo: "meu muito caro Téophile, a dedicatória impressa na primeira página é apenas uma pálida sombra da amizade e da admiração verdadeira que sempre senti por ti. Sabes bem disso". Fico estático contemplando o trecho, enquanto o entusiasmado pesquisador ensaiava cutucões gaiatos no meu braço esquerdo. Se tudo que ele tiver encontrado em Honfleur, se é que encontrou, tiver este potencial incendiário, não irá muito longe. E, ademais, quis dizer a ele que essa coisa de devassar a sexualidade de bastiões da cultura ocidental teve seu tempo de hype, mas que hoje em dia não me parecia fazer diferença se, entre as flores do mal, uma tiver sido uma flor de antúrio.
O acontecimentozinho da tarde teve como boa consequência que eu tomasse da minha própria estante de casa o meu próprio exemplar de "Baudelaire" e o folheasse, depois de quase cinco anos. É de se espantar que qualquer edição de "As Flores do Mal" tenha saído em qualquer tempo sem o incremento desta incrível introdução - o texto de Téophile Gautier não só é riquíssimo de informações privilegiadas sobre o processo criador de Baudelaire, mas tem o papel de funcionar como um auto-de-fé do Modernismo recém-nascido, mostrando como Baudelaire, autor e personalidade, se desvencilhava das investidas rotuladoras das escolas já vigentes. A tentação para quem gosta de biografias modernistas é imaginar se ao escrever este glorioso prefácio, TG já imaginava os problemas judiciais que Baudelaire sofreria, seu isolamento gradativo, sua morte aos 46 anos, nos braços da mãe, depois de um colapso em solo belga, fisicamente devastado e cheio de dívidas.
A tentação dura pouco, no entanto: logo depois somos levados a lembrar que esse mesmo Téophile Gautier, o grande arauto da "arte pela arte", formulador da idéia que seria um dos pilares da etapa mais coesa do modernismo de que a Arte produz beleza e que nada mais pode se esperar dela, não se importaria com isso; que por mais que num prefácio como esse fosse obrigado, pela sua própria trajetória, a equilibrar a amizade e a experiência pessoal com o exame entusiasticamente técnico dos poemas que considera essenciais, o amigo e a obra eram duas instâncias diversas.
Recomendo muitíssimo a leitura desse prefácio feita em combinação com o recém-lançado "Modernismo", do Peter Gay (Companhia das Letras), que na primeira parte, intitulada "Fundadores", traça, em separado, bons perfis de Baudelaire e Téophile Gautier e detém-se um pouco mais na história do processo judicial que obrigou os editores a retirar seis poemas considerados obscenos da segunda edição de "As Flores do Mal". E vou tratar de conseguir para mim alguma edição de "Mademoiselle de Maupin", romance de Gautier que me dizem, mas ainda não provaram, que registra o primeiro threesome entre personagens na literatura do século XIX.



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