sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Gonçalo e as Legítimas Piadas de Português
A Paixão segundo Jean-Claude
Eles pegam o metrô na Siqueira Campos, mais ou menos no mesmo horário, toda terça e quinta há três meses. Há dias em que não se cruzam, por contratempos de parte a parte, mas o normal é que um ou outro esteja perambulando pela plataforma antes que um ou outro desça a escada. Às vezes Jean-Claude artificializa o encontro com estrategemas: num dia em que chegou mais cedo à plataforma e ela não estava, confessa que deixou três composições passarem até que ela assomasse no fim da escada; noutros dias, vai de propósito para um vagão bem distante do dela para não levantar suspeitas; de outras vezes insiste com amigos que encontra pela rua que desçam com ele a estação para que, caso a menina tenha por milagre reparado nele, não pense que é um desgraçado solitário. Como muitos de nós, Jean-Claude tem muito medo de rejeição, mas não é do tipo patológico, não: desenvolve ótimas conversas com garotas em mesas de bar, ou em rodas de amigos quando é apresentado a alguém novo. Mas não se sente à vontade para tirar assuntos da cartola. E se ela for uma homossexual xiita e chutar-lhe o saco? E se ele ficar nervoso e vomitar em cima dela? E se ela simplesmente já tiver escutado elogios aos seus livros milhares de vezes?
Almoçamos juntos no sábado passado, e uma boa parte do tempo entre as garfadas passávamos em contemplação, tentando buscar em nossas mentes uma solução para o desenlace. Minha sugestão: ele deveria utilizar o livro que estivesse folheando no momento como um pretexto para a conversação. Se fosse algo que fosse suficientemente conectável, ele encontraria os motivos para começar uma conversa sem que parecesse uma admiração vinda do nada. Jean-Claude não entendeu minha idéia conectiva, então exemplifiquei: se ela estiver lendo um autor, você pode estar lendo alguém que foi uma influência incontroversa sobre ele ou que o influenciou - se ela ler Cortázar, esteja lendo Onetti; se ela ler Kafka, esteja lendo Robert Walser; se ela ler Rimbaud, esteja lendo Baudelaire.
"Isso é muito bonito na teoria, senhor Pedretti", diz Jean-Claude, reticente, "mas como vou saber que livro estará com ela em cada dia? E se ela estiver lendo Guimarães Rosa e eu só tiver um Nick Hornby? Se ela estiver mergulhada em literatura japonesa dó século XXI e eu só tiver um livrinho do Carlo Levi falando sobre a vida nos cafundós da Itália antes da Grande Guerra para tirar do fundo da bolsa? Vou ter que levar uns seis ou sete volumes na bolsa toda terça e quinta para me manter precavido"; "e ela lida com essa variedade toda?", eu, surpreso, "essa mulher passou por um processo de letramento caleidoscópico, pode acreditar", suspira Jean-Claude, desanimado. Uma parte dele começava simplesmente a achar que ele não seria nunca o bastante para uma mulher como aquela. Confiava nas suas escolhas, mas estava empurrando com a barriga ler coisas que ela tinha nas mãos agora. "Você acredita que da última vez ela estava lendo 'Luz em Agosto', do Faulkner? E o marcador dela já estava láááá no final, naquelas paginazinhas irrisórias do epílogo. E os olhos dela!: totalmente absortos... ela estava totalmente ali dentro e eu nunca li nada de Faulkner. Você acha que devo alimentar alguma esperança?"
Falando assim, parece uma palhaçada infinda, mas as coisas têm a importância que damos a elas, não tem muito jeito, e para Jean-Claude suas leituras e sua conexão com outros leitores é muito importante. Mas eu tinha uma sugestão que considerei que o animaria, já que ele não tinha coragem de falar diretamente: "tire alguma coisa da sua biblioteca que seja muito importante para você e que se conecte de alguma forma com as coisas que você a tem visto ler. Você embrulha para presente, dá para ela com uma dedicatória sucinta se explicando e deixa anexado seu e-mail e telefone. Tendo lido ou não, qualquer pessoa gosta de ganhar um livro. E ela não terá mais como ignorar a sua presença"
Passada uma semana, Jean-Claude vem à loja, não muito animado, e traz um desfecho:
-E então, escolheu o livro?
- Na segunda-feira. "Os Sete Loucos", do Roberto Arlt. Eu tinha duplicado em casa.
-Ah, que bom! E entregou?
- Na terça-feira. Praticamente atirei o livro contra ela, e sai correndo para saltar. Foi ridículo.
-Já tinha todo o potencial para ser ridículo desde o início... Mas e ai? Ela falou com você depois!?
-Na quinta-feira. Veio até mim para agradecer.
-E..?
Contarei o que houve na quarta-feira... Este post já ficou grande demais para prender a atenção de quem quer que seja.
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Vonnegut
Me apresentei ostensivamente a ele, pressionado pela quantidade de vezes que o nome se repetia ao longo da ainda pequena prateleira que um dos meus irmãos, então com 22 anos mais ou menos, montava em seu quarto e que eu bisbilhotava sempre que possível.
Quando eu e ele consumíamos KV, ele já estava bem fora de moda no Brasil. As capas tinham cores chapadas preenchendo desenhos a mão livre de inspiração claramente psicodélica. Se hoje grassa a cultura vintage que agregaria charme sem igual à reedição desses títulos com aquele projeto gráfico setentista, na época eles eram apenas montes de livros velhos, e não havia em parte alguma novas edições: os leitores de Kurt Vonnegut era reféns de sebos e bibliotecas públicas.
Curiosamente, nos EUA livros como "Matadouro nº 5", "Bode Vermelho" e "Almoço dos Campeões" só ampliaram com o passar das décadas seus estatutos de clássicos da literatura do pós-guerra; No Brasil, no entanto, creio que eles passaram os 80 e '90 acorrentados a um cenário de psicodelia, paz e amor, drogas, cores e bandanas que as culturas disco, de plataformas, excesso de rouge e cuba libre, e yuppie, de largas ombreiras e ternos sem gravata à la Miami Vice borrifados de cocaína, quiseram varrer do mapa.
Eu, de minha parte, achava cada livro mais genial que outro: li em seqüência uns 8 de seus livros, e curiosamente apenas no final da trilha, já na faculdade, é que fui apresentado ao que é considerado seu livro maior: "Matadouro nº 5", de 1969. Uma nota sobre a importância deste livro na cultura pop estadunidense - em Footloose, quando o personagem rebelde sem causa da cidade grande interpretado pelo imberbe Kevin Bacon é apresentado a alguns membros da pacata comunidade interiorana de Elmore City, numa conversa sobre livros ele declara que tinha acabado de ler "Matadouro nº 5", animadamente, ao que os respeitáveis nativos retrucam que ali não se lê esse tipo de coisa perniciosa. É o primeiro choque cultural de todos os que viriam ao longo do filme, terminando em... em... festa! Como é possível que todos que viram essa cena, inclusive eu, não tenham saído correndo para ler esse livro?!
Outro dado que manteve os livros de KV longe do cânone oficial prescrito pelos meus professores e formadores midiáticos de opinião: ele se aproximava perigosamente do absurdo e da ficção científica. O protagonista de "Matadouro nº 5" fala com aliens; "Bode Vermelho" encerra com uma cidade após a explosão de uma bomba de nêutrons; um dos personagens centrais de "Hocus Pocus" constrói uma máquina de moto perpétulo; cientistas criam um cristal de nome "ice-nine", que torna toda a água sólida e pode destuir o planeta Terra em "Cama de Gato"; e os contos da coleção "Bem-Vindo à Casa dos Macacos" são quase todos centrados em distopias das mais loucas, inclusive o conto homônimo, que se passa num mundo no qual o grosso da população toma pílulas para acabar com o prazer sexual como forma de contenção da taxa de natalidade e apresenta um revolucionário, Billy the Poet, que estupra cidadãs comuns como forma de libertação espiritual. Tem como um argumento desses surgir seriamente num livro, que não em 1968?
De uns anos para cá, no entanto, a obra de KV tem sido posta em catálogo com novas traduções pela L&PM, geralmente em formato pocket, o que de certa forma realiza a manutenção da aura pulp que envolve seus livros. A exceção é o "Armagedon em Retrospecto", uma coleção de 12 prosas do autor, publicada pela primeira vez ano passado nos EUA, com emocionada introdução de seu filho Mark, que chega em formato convencional, lançamento que é. Os textos são uma ótima introdução ao modo vonnegutiano de contar histórias, e como o título já denuncia, envolvem a grande fixação temática da sua obra: a guerra - porque e como as pessoas matam umas às outras sistematicamente. É uma pergunta tão difícil de responder em qualquer época, que um escritor norte-americano que tenha lutado muito jovem na Segunda Grande Guerra e assistido (literalmente) ao bombardeio de Dresden e escrito a base de sua obra duranta a guerra do Vietnã não parece ter outra forma de lidar com os absurdos humanos coletivos senão mandando mais absurdos de volta.
Essa semana, ainda devo falar mais sobre autores e guerra, mas dou uma pausa em Kurt Vonnegut por hoje citando o epílogo de "Bode Vermelho", no qual o protagonista sai correndo para urinar no banheiro de uma estação ferroviária, por entre a névoa do alívio se dispersando, lê o que está escrito na parede à sua frente, em cima do mictório (e é isso que efetivamente encerra o livro):
"To be is to do." - Socrates
"To do is to be." - Sartre
"Do be do be do" - Sinatra
E assim, na minha cabeça, com muito atraso (o livro é de 1982), está oficialmente inaugurada a pós-modernidade.