segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Vonnegut

Uma das minhas leituras esquisitas de primeira adolescência era Kurt Vonnegut.
Me apresentei ostensivamente a ele, pressionado pela quantidade de vezes que o nome se repetia ao longo da ainda pequena prateleira que um dos meus irmãos, então com 22 anos mais ou menos, montava em seu quarto e que eu bisbilhotava sempre que possível.
Quando eu e ele consumíamos KV, ele já estava bem fora de moda no Brasil. As capas tinham cores chapadas preenchendo desenhos a mão livre de inspiração claramente psicodélica. Se hoje grassa a cultura vintage que agregaria charme sem igual à reedição desses títulos com aquele projeto gráfico setentista, na época eles eram apenas montes de livros velhos, e não havia em parte alguma novas edições: os leitores de Kurt Vonnegut era reféns de sebos e bibliotecas públicas.
Curiosamente, nos EUA livros como "Matadouro nº 5", "Bode Vermelho" e "Almoço dos Campeões" só ampliaram com o passar das décadas seus estatutos de clássicos da literatura do pós-guerra; No Brasil, no entanto, creio que eles passaram os 80 e '90 acorrentados a um cenário de psicodelia, paz e amor, drogas, cores e bandanas que as culturas disco, de plataformas, excesso de rouge e cuba libre, e yuppie, de largas ombreiras e ternos sem gravata à la Miami Vice borrifados de cocaína, quiseram varrer do mapa.
Eu, de minha parte, achava cada livro mais genial que outro: li em seqüência uns 8 de seus livros, e curiosamente apenas no final da trilha, já na faculdade, é que fui apresentado ao que é considerado seu livro maior: "Matadouro nº 5", de 1969. Uma nota sobre a importância deste livro na cultura pop estadunidense - em Footloose, quando o personagem rebelde sem causa da cidade grande interpretado pelo imberbe Kevin Bacon é apresentado a alguns membros da pacata comunidade interiorana de Elmore City, numa conversa sobre livros ele declara que tinha acabado de ler "Matadouro nº 5", animadamente, ao que os respeitáveis nativos retrucam que ali não se lê esse tipo de coisa perniciosa. É o primeiro choque cultural de todos os que viriam ao longo do filme, terminando em... em... festa! Como é possível que todos que viram essa cena, inclusive eu, não tenham saído correndo para ler esse livro?!
Outro dado que manteve os livros de KV longe do cânone oficial prescrito pelos meus professores e formadores midiáticos de opinião: ele se aproximava perigosamente do absurdo e da ficção científica. O protagonista de "Matadouro nº 5" fala com aliens; "Bode Vermelho" encerra com uma cidade após a explosão de uma bomba de nêutrons; um dos personagens centrais de "Hocus Pocus" constrói uma máquina de moto perpétulo; cientistas criam um cristal de nome "ice-nine", que torna toda a água sólida e pode destuir o planeta Terra em "Cama de Gato"; e os contos da coleção "Bem-Vindo à Casa dos Macacos" são quase todos centrados em distopias das mais loucas, inclusive o conto homônimo, que se passa num mundo no qual o grosso da população toma pílulas para acabar com o prazer sexual como forma de contenção da taxa de natalidade e apresenta um revolucionário, Billy the Poet, que estupra cidadãs comuns como forma de libertação espiritual. Tem como um argumento desses surgir seriamente num livro, que não em 1968?
De uns anos para cá, no entanto, a obra de KV tem sido posta em catálogo com novas traduções pela L&PM, geralmente em formato pocket, o que de certa forma realiza a manutenção da aura pulp que envolve seus livros. A exceção é o "Armagedon em Retrospecto", uma coleção de 12 prosas do autor, publicada pela primeira vez ano passado nos EUA, com emocionada introdução de seu filho Mark, que chega em formato convencional, lançamento que é. Os textos são uma ótima introdução ao modo vonnegutiano de contar histórias, e como o título já denuncia, envolvem a grande fixação temática da sua obra: a guerra - porque e como as pessoas matam umas às outras sistematicamente. É uma pergunta tão difícil de responder em qualquer época, que um escritor norte-americano que tenha lutado muito jovem na Segunda Grande Guerra e assistido (literalmente) ao bombardeio de Dresden e escrito a base de sua obra duranta a guerra do Vietnã não parece ter outra forma de lidar com os absurdos humanos coletivos senão mandando mais absurdos de volta.
Essa semana, ainda devo falar mais sobre autores e guerra, mas dou uma pausa em Kurt Vonnegut por hoje citando o epílogo de "Bode Vermelho", no qual o protagonista sai correndo para urinar no banheiro de uma estação ferroviária, por entre a névoa do alívio se dispersando, lê o que está escrito na parede à sua frente, em cima do mictório (e é isso que efetivamente encerra o livro):

"To be is to do." - Socrates
"To do is to be." - Sartre
"Do be do be do" - Sinatra

E assim, na minha cabeça, com muito atraso (o livro é de 1982), está oficialmente inaugurada a pós-modernidade.
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A interessante foto dos cinco livros empilhados ai em cima eu encontrei na rede sob autoria de um rapaz auto-denominado Bruno Lorenz, no seguinte link
Ele inclusive procura pessoas que tenham e queiram vender os esgotados e preciosos "Kurts".

Um comentário:

  1. É engraçado como as capas que hoje achamos lindas e "vintage" não tinham a menor graça quando éramos mais jovens...
    Ah, e eu me lembro dessa cena do Footloose claramente, com dublagem da Globo e tudo! hehe

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