sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Gonçalo e as Legítimas Piadas de Português


Gonçalo Tavares é um dos mais aclamados escritores portugueses da nova geração (nunca me sinto confortável em falar sobre "nova geração", porque não sabemos quão novo um sujeito deve ser para ser de uma geração que se entenda por nova, mas ele não tem ainda 40 anos, o que quero crer que seja bem jovem ainda hoje). E a graça de tanto confete e serpentina sobre sua pessoa é que GT é, e isto é algo que se enxerga a milhas de distância, uma pessoa bem simples. Tendo assistido sua falação ao lado de Enrique Villa-Matas na FLIP 2005 e sua participação na última mesa da festa, tradicionalmente intitulada "Livro de Cabeceira", entoando, emocionado, um trecho de "A Paixão Segundo G.H.", isso restava incontroverso. Mesmo nos meandros de seu multiplatinado romance "Jerusalém" já se vê que ele não vê motivo para enrolar o que já não é fácil. Essa objetividade eu definitivamente admiro... e invejo.


Folheava eu "Aprender a Rezar na Era da Técnica", o mais recente trabalho lançado no Brasil (quase ao mesmo tempo que "Histórias Falsas", pela Casa da Palavra) e percebi que era um bom livro. Percebi, o que infelizmente não fez com que eu me emocionasse em nada com sua obra. Depois, dei uma olhada em outro romanção, "Um Homem: Klaus Kemp", e procurei resgatar uma vez mais o encanto que tinha visto na prosa de GT. Mas não consegui. Depois dessas árduas tentativas, tive que me render: o que eu gosto mesmo do Gonçalo Tavares é o seu anedotário - as micro-histórias iluminadas da coleção "O Bairro".


"O Bairro" é uma série de 5 livros fininhos (máximo de 80 páginas), modestíssimos, aqui lançada pela Casa da Palavra, e que contém historinhas, às vezes engraçadas, às vezes trágicas, geralmente as duas coisas ao mesmo tempo. São, sendo muito franco, piadinhas. Mas não piadinhas para rir. Piadinhas, na verdade, para se angustiar nervosamente e rir só porque não se tem saída. Uma conhecida minha, cujo projeto de mestrado é em torno da obra de Gonçalo Tavares, provavelmente me repreenderá, dizendo que "O Bairro" é um exercício, um conjunto de obras menores, diante das construções substancialmente mais intrincadas dos romances multiplatinados. Mas adianto minha resposta: é nestas minúsculas jóias que, para mim, está o grande escritor barbudo. Aqui copio duas delas, uma de "O Senhor Brecht", e outra de "O Senhor Juarroz" (cada livro tem por padrinho um grande autor do século XX, habitante d"o bairro" a que a coleção faz menção, mas isso nada, absolutamente nada tem a ver com as historietas):


o cantor


Um pássaro foi atingido com um tiro na asa direita e passou por isso a voar na diagonal.

Mais tarde foi atingido na asa esquerda e viu-se obrigado a deixar de voar, utilizando apenas as duas patas para andar no chão.

Mais tarde foi atingido por uma bala na pata esquerda e passou por isso a andar na diagonal.

Uma outra bala atingiu-o, semanas depois, na pata direita, e o pássaro deixou de poder andar.

A partir desse momento dedicou-se às canções.


* * *

os nomes e as coisas


Para mostrar que não se submetia à ditadura das palavras, o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objetos.

Metade do seu dia de trabalho passava-o assim a atribuir nomes às coisas.

Por vezes, ficava tão cansado com essa tarefa inaugural, que passava a segunda parte do dia de trabalho a descansar.

Quando adormecia os novos nomes das coisas misturavam-se, nos sonhos, com os antigos nomes, e por vezes o senhor Juarroz acordava tão embaralhado que deixava cair a primeira coisa que tentava segurar, e essa coisa, da qual por momentos não sabia o nome, partia-se.


Justamtente antes de publicar isso, conversei com meu amigo Roberto Rosa sobre o efeito que pretendia evocar, de uma leitura que não nos move profundamente mesmo quando temos que admitir sua qualidade. A isso ele mencionou um texto de Cioran que, ao falar sobre a literatura de Borges, o colocava como fundamentalmente um sedutor. Não lemos um conto como "O Aleph" ou "As Ruínas Circulares" pensando "nossa, como isso é bom, não é mesmo?". Se fazemos isso, estamos ou contaminados demais pelas expectativas crescentes a respeito do que temos nas mãos, ou somos simplesmente idiotas. Na maior parte das vezes, o processo é a sedução, nem mais nem menos. E ao terminar a leitura, não precisamos ficar tecendo loas à habilidade do eminentíssimo mago das letras da vez - apenas estivemos , onde ele nos posicionou pelas páginas que durou o conto.

Ciência inexata que é, a sedução não funciona com todos da mesma forma. Mas, para mim, os contos d"O Bairro" devem estar um passo mais próximos do meu coração que "Jerusalém", por exemplo.

4 comentários:

  1. Seduziu-me à comoção a menção de nossa conversa! A sensação de ter estado "aqui" é agradabilíssima!

    Abçs!
    Roberto.

    PS: Ótimas as duas "piadinhas" do GT que vc destacou. A do pássaro eu já havia lido. A da ditadura das palavras, bem, nem precisava ler para me sentir sempre perseguido pela mesmíssima opressão. Mas é quase uma Síndrome de Estocolmo, já que o que está convencionado funciona também como porto seguro, quando, por excesso de invenção (estender beirando o rompimento até conhecer o avesso talvez componha força vital), acabamos partindo coisas demais. Divagações semiológicas...

    ResponderExcluir
  2. Belíssimas impressões... dentre todos fico com o Senhor Breton... e com o primeiro sonho do Senhor Calvino... vale ressaltar o certeiro "Breve notas sobre a ciência", infelizmente ainda inédito no Brasil, no qual há pérolas como "Ser exato em ciência é errar num tom de voz mais firme que outros. / Dito de outro modo: pegas no alvo com as tuas duas mãos e atiras seu centro contra a lâmina da flecha. / Eis a exatidão científica".

    ResponderExcluir
  3. Caro Roberto, não poderia deixar de mencionar o que falamos sobre o Cioran pouco antes que eu postasse - era justamente "sedução" a palavra que me faltava
    E bem citado por Herr Müller o "Breve Notas sobre a Ciência". Tive oportunidade de folhear uma edição portuguesa e espero que saia uma brasileira em breve.

    ResponderExcluir
  4. Conheça nossos bibliocantos temáticos e personalizados!
    Feitos no Brasil, com a precisão do corte a laser e pintura eletrostática.

    http://www.elo7.com.br/peculiartes

    https://www.facebook.com/BibliocantosPortaLivrosPersonalizados

    ResponderExcluir