sábado, 15 de agosto de 2009

Contornando Clássicos - Parte 1

Quando começamos a procurar nossas primeiras leituras sérias (acho que para a maior parte das pessoas, da minha “geração” ao menos, foi em torno dos 13 anos) ficamos imediatamente permeáveis a vários mecanismos institucionais de dicas a respeito, e descobrimos que a melhor coisa a fazer neste instante é ler OS CLÁSSICOS. Professores, pais, pais de colegas, as coleções da Abril Cultural vendidas nas bancas, as listas infindáveis dos melhores e mais importantes livros dos séculos XX, XIX ou XVIII, cultivadas e compradas avidamente por pessoas que deixarão os volumes embolorarem nas estantes sem nunca nem encostar na lombada – todas essas fontes apontam para OS CLÁSSICOS. Infelizmente, a maior parte dos CLÁSSICOS não nos diz muito quando temos 13 anos, ou, se tinham o potencial de dizer, este é neutralizado precisamente pelo excesso de indicações.
Por exemplo, o livro que você tem que ler para fazer um trabalho do colégio -> leia, faça o que tem que fazer... e esqueça-o. Ele nunca mais vai servir para nada na sua vida, nem diversão nem aperfeiçoamento pessoal. Ele está esteticamente morto, até que você consiga, eventualmente, ressuscitá-lo na idade adulta, com um desfibrilador crítico muito potente. Isso aconteceu comigo com Machado de Assis, Lima Barreto e José de Alencar, entre outros tantos. Hoje em dia, indicam Clarice Lispector para leitura em colégios. Acho isso quase criminoso. Um livro como “Perto do Coração Selvagem” tem que ser encontrado na estante, no meio de coisas inofensivas, você tem que lembrar de ter escutado o título mencionado pelo seu tio depravado que fugiu com a empregada, depois levado em segredo para o quarto, lido na calada da noite, clandestinamente. Só assim ele pode encontrar sua função.
Dei sorte com alguns desses autores e livros nos meus próprios 13 anos; fuçando a estante encontrei muita coisa que não fazia idéia de quão famosa ou importante ou fantástica era, e consegui estabelecer uma relação mais franca com esses textos. Um, em particular, me vem à cabeça: o final de um conto que achei numa edição já velhinha da Ediouro: "Arábia". Não li todos os contos na época, mas nunca me esqueci do final deste. A história era basicamente de um garoto da minha idade que queria ir a uma quermesse numa cidade próxima porque queria comprar uma lembrança para a garota da qual gostava, e também porque todos estariam lá, era o grande acontecimento da região, ele não podia faltar! Mas o tio, que fazia as vezes de pai, demorava a chegar em casa para lhe dar dinheiro para ir... demorava e demorava... e ele não conseguiu sair até muito tarde de casa. Quando chegou à quermesse, estava quase tudo fechado, e ele, decepcionado, disse, encerrando o conto (tradução de Hamilton Trevisan):
“Fitando a escuridão, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada por quimeras. Meus olhos queimavam de angústia e ódio.”
Eu entendia totalmente o que ele sentia – um ódio hormonal, amplificado pela sensação de aprisionamento às decisões dos adultos, pela impotência financeira e pela certeza de que ele não conseguiria transmitir este ódio para mais ninguém, porque ninguém daria importância (e anos mais tarde apenas ele veria que com razão). Nunca esqueci as imagens que esse conto evocou para mim, e a identificação esquisita, automática, com aquele destino.
E eu, felizmente, não sabia quem era esse tal de James Joyce.

2 comentários:

  1. A delicadeza com que você escreveu esse post me deu o que pensar durante alguns dias... Acho que agora entendo o porque do prazer antigo que me vem quando entro numa livraria: é algo como a excitação que antecede a descoberta de um tesouro. Esses encontros clandestinos com certos livros, aparentemente inofensivos, foram experiências irreversíveis e criadoras de um mundo mágico - onde ainda insisto em habitar. Caro livreiro, guardador de tesouros: suas palavras transformam esse monte de papel impresso em paisagens convidativas! :)

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  2. Certíssimo! É um crime empurrar garganta abaixo livros que deveriam ser descobertos com o susto provocado pela curiosidade diante de uma estante recém-revelando mundos desconhecidos. Talvez, hoje, até as descobertas já venham com etiquetas de recomendação... Os meus sustos literários foram bem tardios; creio que aos treze anos eu ainda estava devorando as revistinhas da Turma da Mônica. O seu blog é uma galeria de agradabilíssimas luzes, já estou recomendando indiscriminadamente! Quando a Mônica (não a do Maurício de Souza...) me contou sobre esta novidade, fiquei muito contente, pois suas palavras no ar concretizam aos olhos de muitos outros o que nós já sabemos: a inteligência feroz e delicada que dará sustos nos mais desavisados:) Parabéns!

    PS: Não entendo muito de divulgação na internet, ou de proselitismo virtual, mas, por muito gosto e admiração, coloquei um link para seu blog no meu blog de desenhos. Cada um que lá visitar e pular para o seu poderá descobrir que a curiosidade de voltar os olhos (ou o mouse) para novas estantes vale muito a pena.

    Abçs,
    Roberto Rosa.

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